sexta-feira, outubro 08, 2004

sobre nós, as mulheres

Não consigo dormir. Estou num estado de completa exaustão, e acho que por isso até o meu cérebro se recusa a esforçar para adormecer o corpo. Fico a remexer nas pontas da almofada, na costura do lençol, a pensar em coisas estúpidas. Chego ao ponto de trocar rostos com datas e pensar, num qualquer delírio, que a Betty Boop é prima da minha mãe, que por sua vez é a Teresa Guilherme (!!!).

Benzo-me.

Dei há pouco uns passos até à cozinha, mas regressei depois de um copo com água. Odeio comprimidos. Que se lixe...

Já passou meia-hora, já voltei atrás no tempo e ando às voltas a pensar nas mulheres. Não em mulheres, mas nas mulheres. Entram-me pelo táxi dentro, sentam-se com as suas pastas, falam ao telemóvel com amigas, com alguém da empresa que lhes anda a pisar os calos, outras em silêncio, os rostos preocupados a caminho de um hospital ou uma clínica... desemboco na minha mãe (outra vez ela) a passar a ferro o cabelo, nos anos 60, depois a cortá-lo, quando fez 35 anos, a ficar todo ondulado... Gosto da Mulher. Adoro-nos. Sobretudo este transmutar-se, mudar-se, crescer; a passagem solene e subtil que, aqui e ali, encontra marcas rupturais; assim, de repente.
Entram no táxi e penso:
-tem ar de 30 anos, mas tem apenas 26
-tem ar de mãe, mas é apenas solteira e só
-tem cabelo de velha, e é ainda tão nova...

Nós somos assim. Parecemos assim. Fazemos fitas para cortar o cabelo. Um drama. É mesmo assim. É mesmo. Porque em relação aos homens nós mudamos constantemente aos olhos dos outros, de forma palpável, visível. Aos nossos olhos, sobretudo. Não trocamos apenas o fato pela roupa 'à civil' todas as sextas-feiras. Mudamos mesmo. De repente. Trazemos o cabelo escadeado, curto, à maria-rapaz, com extensões... castanho, caju, louro, preto... com madeixas... nuances... somos outra. De repente, nem que por dois dias, toda a gente repara em nós. Acima de tudo: nós reparamos em nós, com uma atenção acima do normal, aos detalhes. De cada vez que mudamos alguma coisa, arrastamos uma onda de auto-análise atrás. Nenhum homem algum dia vai conseguir perceber isto.

Levanto-me e vou até ao espelho. Acho que estou igual há já 3 anos. O mesmo corte de cabelo. A mesma cor. As olheiras notam-se e de que maneira. Deve ter sido da noite de hoje. É normal...

-tens uma testa que parece a frente de um camião!
-tem cabelo preto natural; que sorte...
-tens um ar cada vez mais fabuloso... que raiva...

Relembro algumas mulheres que já conheço, que levo todas as semanas aos mesmos sítios. Lembro-me, inclusivamente, de uma 'rapariga de programa' giríssima; nos dois anos em que ela me pediu exclusivamente para a levar e ir buscar aos sítios, foi curioso observar como ela mudou em dois anos; meu deus! Chamem-me galdéria, parva, o que quiserem, mas aquela rapariga, com ar de rapariga, com tudo de rapariga, tornou-se uma mulher. Não sei quem terá sido o homem a levá-la aos sítios certos. Mas levou-a, definitivamente, aos sítios certos. E poder assistir a este tipo de mudança, de transformação, é impressionantemente abismal. Talvez seja isso que significa, afinal, ser mãe; estar para lá da mudança, estar a observar a mudança, a ser testemunha diária da passagem do tempo.

Como diria o senhor Martins:
-coisas como esta só se vêem em África, quando o sol nasce e nós estamos sentados há meia-hora com os olhos postos no horizonte.

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