sexta-feira, outubro 29, 2004

sobre jantes de liga leve

A nós, mulheres, bastaria que os bares servissem bons copos de vinho.
Não precisavam de nos pagar shots ou vodkas a rodos. Bastava-nos um bom copo de vinho tinto para nos levar para a cama. Isso e uma conversa bem-disposta.
Acham-me demasiado directa?
Não digam depois que as mulheres é que são misteriosas e não sabem o que querem...
Acreditem, meus caros. É o que nos excita. Sigam a dica se quiserem.
Uma música ambiente. Um bom copo de vinho. Uma conversa que não passe a pente fino a prestação do governo (só lembrar os cabelos lambidos e os nós das gravatas insípidos!...) ou futebol, mas algo a ver com artes ou viagens.

Ah, e por favor, deixem de puxar o brilho às jantes de liga leve...
Nós queremos mesmo é saber do interior.

;)

MANIFESTO aos colegas, aos amigos, a todos

Recebo o comentário do Sr. J. Armando sobre este blog onde escrevo há relativamente muito pouco tempo (sobretudo se comparado com o tempo do Universo... Sim, já fui dar uma vista de olhos ao seu blog, o Dicas: jarmando.blogspot.com).

Aproveito então o momento para deixar aqui uma declaração de princípios:

É claro que todos podem referenciar este blog onde quiserem e da forma como quiserem. Ele é público. Isso não posso nem quero evitá-lo. Quem escreve num blog sob a capa de que o faz de forma pessoal sem ter em vista os outros, mente. Há sempre uma parte de nós que sabe que outros irão ou poderão ler-nos, e isso transforma estes diários em diários semi-públicos.

Portanto amigos: sejam livres, falem mal, falem bem, falem.
Prometo que, também aqui, não fugirei aos meus momentos e que, sempre que precisar ou desejar, irei referenciar outras pessoas, outros blogs, outros nomes.

Quanto a informações da índole pessoal (neste caso relativamente aos meus anos de profissão), lamento, mas terão de depreender todas essas coisas pelas entrelinhas dos posts que aqui vão sendo inseridos. Se não quisesse ocultar a minha identidade não teria apagado todos os traços que num blog nos revelam sobremaneira
: )

Aos poucos, aos poucochinhos, todos vamos acabando por conhecer melhor as pessoas. Mas talvez seja de já não ser nova, quem sabe... outrora não era assim...Hoje, prefiro mil vezes ir-me enamorando a ficar de coração arrebatado logo ao primeiro minuto.

Um abraço a todos,

quinta-feira, outubro 28, 2004

Sobre o que o cinema não diz

Ando há dias à espera que me apareça aqui alguém interessante. Não tem aparecido. É por isso que depreendo que a maior parte das profissões... (reescrevo) todas as profissões não se aproximam nem a uma décima do que o cinema retrata. -Os criativos publicitários não são todos milionários e galãs.
-Os advogados não são todos charmosos e eticamente correctos.
-E sobretudo: a vida de taxista não é tão fantástica e etnicamente enriquecedora como se pinta.

Têm-me passado por aqui os eternos casais de idosos para ir ao Santa Maria ou ao Hospital da CUF, os apressados business-man da praxe com o jornal na mão, aquele, o outro, o aqueloutro, enfim... o mesmo de sempre. Nem um estrangeirinho decente me tem aparecido. Tudo os mesmos chatos banais remetidos ao silêncio de sempre, só quebrado para dizer a morada de destino e perguntar quanto é...

Rotina?... Tédio?... Enfado!
Às vezes pergunto-me porque não dei ouvidos ao meu pai e me meti a jogar à bola!

...ah, é verdade. Foi porque sou mulher.

segunda-feira, outubro 25, 2004

sobre as segundas-feiras

Deveriam ser espezinhadas com tacões agulha de aço (sem capas), cortadas em tiras finas com uma lâmina de barbear rombuda, demolhadas em álcool puro, depois regadas com ácido sulfúrico e, finalmente, oferecidas a um animal carnívoro qualquer que apenas gostasse de aí afiar as garras e os caninos, durante o tempo mais longo possível...

...mas como o mais provável, durante todo este processo, seria vir uma associação de defesa das segundas-feiras gritar por socorro, o melhor mesmo era abatê-las logo a tiro, para não haver hipótese de fuga possível.


sexta-feira, outubro 22, 2004

mito sobre a profissão #8

-todos os taxistas ou motoristas têm o rabo grande por andarem sempre sentados.


(o rabo é grande por uma particularidade genética e hereditária! Não tenho culpa de ser mulher. E não é rabo grande. Eu, pelo menos, não tenho o rabo grande. Posso é ter ancas largas!)

quinta-feira, outubro 21, 2004

[de luto, de preto, em silêncio]

pelo colega que morreu em serviço, esta manhã, na 24 de Julho.


adeus.

quarta-feira, outubro 20, 2004

sobre a ortografia

Li hoje a notícia no Público e resolvi dar um giro e ver a coisa pelos meus próprios olhos. Sim. Lá estava ela. A bela placa, no número 675, em reconstrução, ali na Rua de S. Bento e junto ao Largo Hintze Ribeiro. No cartaz ali colocado pode-se ler: "A empresa não se responsabelisa pelos carros estacionados junto à vedação".

E eu é que sou taxista...

segunda-feira, outubro 18, 2004

sobre educação

Páro. As pastilhas já guincham. A chuva molha. Os outros. Eu fechadinha e quente na minha cabine isoladora e protectora. A porta abre-se. Um tipo; atirado à força para o banco; porta puxada com 100 cavalos de força. Um estrondo de morte. Valha-nos o aço...

-Para o Saldanha!

Pois claro. Vamos lá... e um "Bom-Dia", não?
Se for preciso cumprimentam a mulher das limpezas, quem lhes serve o café, o homem dos bolos, o chefe nem se fala, a colega boa, a colega menos boa porque é amiga da boa, o colega, o outro colega, a outra colega não tão boa como a boa mas também boa, e a si mesmo, quando se olha ao espelho, cem vezes ao dia. A mim não. Para quê!? Eu sou a única "passageira". Não é ele. Eu. Eu é que sou "passageira". Aos outros precisa de mimá-los. Cuidar deles. Cuidar bem deles para que assim cuidem bem de si. Para lhe limparem bem a secretária, servirem bons cafés, guardarem sempre o Record e, enfim, quem sabe, poder ir para a cama com todas, quem sabe até com todos...
Eu não.
Eu passo.
Nós, taxistas, motoristas, passageiros, passantes, vistas fugazes, somos gente para chegar, usar e deitar fora. Descartáveis. Nós somos os que passam. A nós, passam-nos. Nós taxistas, somos assim. Chegam, usam, pagam e trespassam para o próximo que vier.
Já me aconteceu, e não minto nisto, haver quem até nem feche a porta!

Malditas segundas-feiras...

sexta-feira, outubro 15, 2004

sobre a polivalência

Às vezes parece-me que o conceito de trabalhador polivalente já se instaurou definitivamente e alargou a todos, até a nós, taxistas.
Pelo vistos, aos olhos dos outros agora também sou enfermeira...

Ele: Desculpe fazer-lhe esta pergunta...
Eu: Diga, diga...
Ele: Já tomou a vacina anti-gripe?
(e eu a pensar que ele me ia perguntar sobre qual o melhor caminho para chegar ao Arco do Cego às nove da manhã ou até o meu número de telefone!)
Eu: Eu!?... Por acaso sim, já...
Ele: E diga-me uma coisa... isso como é?
Eu: (abismada e a achar que, das duas uma, ou o gajo era tarado ou estava a sacar da arma para me assaltar) É uma vacina!, que quer que lhe diga!?
Ele: Pois, sim... mas é intra-muscular?
Eu: Intra-muscular!?... Sei lá! É uma vacina, como as outras!
Ele: É com agulha, no braço?
Eu: Sim, exacto.
Ele: E dói muito?
Eu: (ele há com cada paranóico!!!) Não, é um instante. Não dói nada.
Ele: Ah, ainda bem. Muito obrigado.
Eu: (deves ser fresco, deves...) De nada.
Ele: É que nos obrigaram a tomar a vacina a todos, lá no banco...
Eu: Pois... tem que ser, não é?
Ele: É...
Eu: E o senhor faz o quê, lá no banco?
Ele: Eu? Sou Director Financeiro. (sorriso pomposo, ajeitar da gravata passados vinte segundos)
Eu: Ah...

quinta-feira, outubro 14, 2004

sobre roupa nova

A segunda coisa que mais gosto na roupa nova, depois do facto da roupa ser nova, é o cheiro, esse cheiro a novo, a tecido, a algodão, a poliéster, a camisa no meio de mil camisas num lote de dez mil camisas empilhadas - esse cheiro a novo, a roupa, autêntica, ainda impessoal, ainda no ínício.

Sempre que compro roupa nova, uso-a antes de a lavar.
Pode não ser comum. Pode até não ser higiénico. Que se dane. Eu amo o primeiro dia em que uso cada peça nova que compro. E lamento, mesmo, este carro que conduzo me ter chegado às mãos já depois de ter passado por tantos colegas. Deve ser também por isso que amamos esse cheiro das crianças, esse cheiro a bebé, esse cheiro limpo, quase doce, puro, ainda isento de qualquer contacto com o mundo exterior, este mundo repleto de poluição de gente...

quarta-feira, outubro 13, 2004

sobre a vida

- (...) já viu!? Depois ainda tenho que pagar a faculdade do mais novo. Chegamos ao fim do mês, e... tá a ver... Mas ainda nos vêm dizer o que queremos ouvir. À espera de nos enfiar as verdades falsas pelos olhos adentro...

- (aceno que sim)

- Mas isso nem é o pior. O que me dana é saber que anda pr'aí muito malandro por essas instituições públicas a mamar! Mas a mamar mesmo! A mamar forte e feio! Digo-lhe: a esses gajos era fazer como na China!, cortava-se-lhes as mãos e pronto!

- (aceno que sim)

- É a vida, não é...

- (aceno que sim)

- Sabe que às vezes me ponho a pensar - Afinal: o que é que andamos cá a fazer!? Para que é que estamos cá!?... Acho que é mesmo tudo só uma passagem...

- (aceno que sim)

- É a vida, não é!?

- É... é a vida; mais curta que comprida.

mito sobre a profissão #7

um dia inteiro sem rádio.
- é possível?

( é. )

segunda-feira, outubro 11, 2004

taxi-lag

o que é estranho na nossa profissão é que nos fartamos de viajar, de somar quilómetros, e no fundo, no fundo, para não sairmos dos mesmos 20 km quadrados e ver sempre as mesmas coisas...

sobre a Maria Rueff

(Puto ao fim de 1 minuto a olhar-me de lado, no banco de trás)

-Ó mãe, esta não tem bigode!


...maldita Maria Rueff.

sobre as diferenças entre Portugal, Londres e Espanha

esta senhora ensina-me umas coisas, algumas das quais me deixam cabisbaixa;

primeiro diz-me que, segundo leu na BBC, os taxistas londrinos têm um hipocampo maior que qualquer outro londrino; depois diz-me que lá por Madrid já têm GPS nos táxis desde Maio de 2004 (!!!).
...e eu a chegar todos os dias a casa com dores de cabeça por causa da porcaria daquele rádio-táxi fanhoso!

Já lá dizia o jorge Palma: "Ai Portugal, Portugal!..."

mito sobre a profissão #6

-há taxistas que nunca tiveram um único toque ou acidente.

(...começaram a trabalhar ontem?)

sobre o erotismo

Há casais assim; perdidos no esquecimento do eros;
devem andar abafados em problemas de trabalho, intrigas de bastidores, contas da água e da luz, preocupados com o sinal da TV-Cabo (esses malandros chauvinistas, opressores e borbulhentos), quiçá até distraídos e embrenhados nas crónicas semanais dos colunistas dos diários.
quem sabe, devem ser dos que guiam em hora de ponta com uma Visão em cima do volante, a carregar no acelarador e no travão por instinto, sem terem batido uma única vez...

Digo isto não por ter observado ao calhas um qualquer duo de apaixonados adormecidos aí pela rua e tirado as minhas conclusões precipitadas, mas porque os levei mesmo no táxi:

(entram)
Ela: Chega-te mais para mim; está frio!
Ele: Era para o Bairro das Galinheiras...
(passam alguns segundos, em completo silêncio)
Ela: Estás tão quentinho...
(vejo-a a agarrar-se com força ao braço dele, depois a meter uma mão pela perna)
Ele: hã.... desculpe... podia ir mais depressa um bocadinho, se faz favor?

Não posso deixar de achar uma certa graça a estas situações; passam-se várias vezes; fico assim com uma sensação de ser Taxista-Viagra; parece incrível, mas devia haver alguém a estudar estes fenómenos de "urgências nos lugares e momentos mais inoportunos"; vá-se lá perceber o que estimula o nosso cérebro tão complicado... O que é bom nisto é que saem com tanta pressa que quase sempre deixam o troco todo como gorjeta.

sobre colegas de profissão

há por aí, certamente, quem duvide de tudo isto.
"uma mulher taxista a escrever um blog!? deixem-me rir! os taxistas nem sabem ler, quanto mais uma mulher escrever um blog!"

serve o anterior comentário pseudo-machista e preconceituoso de entrada a uma demonstração de arte, não só de arte fotográfica como, igualmente, de arte web e arte da escrita.

cliquem aqui, e vejam uma porta de entrada para o registo pessoal de não um, mas de vários taxistas;
escolha minha: a senhora chamada Rosa Maria; por ela fico a saber que o meu sonho dos táxis em Lisboa serem rosa-choque, pelos vistos, não é ideia nova... senão vejam.

ainda dizem que o México anda mais atrasado que Portugal...
nos blogs não é de certeza.

sobre a rádio

para o comum dos mortais que vai e vem de carro para o trabalho, os locutores da rádio são um entretém de primeira água; para um taxista não; pelo menos para mim não são; mesmo. Já bastam as conversas chatas dos clientes. Neste momento, a extinta Voxx é a minha companhia assídua; ali está ela, sem RDS, sem nome, algures nos 91, sem locutores a interromper, sem publicidade... só música, música, música.
(suspiro bom)

sobre o trânsito

quando abrem as vagas para o brevet de piloto de helicópteros!?
alguém sabe se todos podemos concorrer?
...não vejo a hora de ver a rotunda do Marquês de Pombal e a Av. E.U.A. bem lá de cima, bem lá de longe, sobretudo isso: de longe!

sexta-feira, outubro 08, 2004

sobre nós, as mulheres

Não consigo dormir. Estou num estado de completa exaustão, e acho que por isso até o meu cérebro se recusa a esforçar para adormecer o corpo. Fico a remexer nas pontas da almofada, na costura do lençol, a pensar em coisas estúpidas. Chego ao ponto de trocar rostos com datas e pensar, num qualquer delírio, que a Betty Boop é prima da minha mãe, que por sua vez é a Teresa Guilherme (!!!).

Benzo-me.

Dei há pouco uns passos até à cozinha, mas regressei depois de um copo com água. Odeio comprimidos. Que se lixe...

Já passou meia-hora, já voltei atrás no tempo e ando às voltas a pensar nas mulheres. Não em mulheres, mas nas mulheres. Entram-me pelo táxi dentro, sentam-se com as suas pastas, falam ao telemóvel com amigas, com alguém da empresa que lhes anda a pisar os calos, outras em silêncio, os rostos preocupados a caminho de um hospital ou uma clínica... desemboco na minha mãe (outra vez ela) a passar a ferro o cabelo, nos anos 60, depois a cortá-lo, quando fez 35 anos, a ficar todo ondulado... Gosto da Mulher. Adoro-nos. Sobretudo este transmutar-se, mudar-se, crescer; a passagem solene e subtil que, aqui e ali, encontra marcas rupturais; assim, de repente.
Entram no táxi e penso:
-tem ar de 30 anos, mas tem apenas 26
-tem ar de mãe, mas é apenas solteira e só
-tem cabelo de velha, e é ainda tão nova...

Nós somos assim. Parecemos assim. Fazemos fitas para cortar o cabelo. Um drama. É mesmo assim. É mesmo. Porque em relação aos homens nós mudamos constantemente aos olhos dos outros, de forma palpável, visível. Aos nossos olhos, sobretudo. Não trocamos apenas o fato pela roupa 'à civil' todas as sextas-feiras. Mudamos mesmo. De repente. Trazemos o cabelo escadeado, curto, à maria-rapaz, com extensões... castanho, caju, louro, preto... com madeixas... nuances... somos outra. De repente, nem que por dois dias, toda a gente repara em nós. Acima de tudo: nós reparamos em nós, com uma atenção acima do normal, aos detalhes. De cada vez que mudamos alguma coisa, arrastamos uma onda de auto-análise atrás. Nenhum homem algum dia vai conseguir perceber isto.

Levanto-me e vou até ao espelho. Acho que estou igual há já 3 anos. O mesmo corte de cabelo. A mesma cor. As olheiras notam-se e de que maneira. Deve ter sido da noite de hoje. É normal...

-tens uma testa que parece a frente de um camião!
-tem cabelo preto natural; que sorte...
-tens um ar cada vez mais fabuloso... que raiva...

Relembro algumas mulheres que já conheço, que levo todas as semanas aos mesmos sítios. Lembro-me, inclusivamente, de uma 'rapariga de programa' giríssima; nos dois anos em que ela me pediu exclusivamente para a levar e ir buscar aos sítios, foi curioso observar como ela mudou em dois anos; meu deus! Chamem-me galdéria, parva, o que quiserem, mas aquela rapariga, com ar de rapariga, com tudo de rapariga, tornou-se uma mulher. Não sei quem terá sido o homem a levá-la aos sítios certos. Mas levou-a, definitivamente, aos sítios certos. E poder assistir a este tipo de mudança, de transformação, é impressionantemente abismal. Talvez seja isso que significa, afinal, ser mãe; estar para lá da mudança, estar a observar a mudança, a ser testemunha diária da passagem do tempo.

Como diria o senhor Martins:
-coisas como esta só se vêem em África, quando o sol nasce e nós estamos sentados há meia-hora com os olhos postos no horizonte.

sobre neuras

Deito-me. Saturada desta vida. Apetece-me concordar com todos e trabalhar para deitar abaixo o governo. Desculpem. Não consigo. Fazer noites a conduzir é do mais desgastante e deprimente que há. Do mais perigoso também. Pouso o carro no sítio do costume e meto as chaves na mala. Gostava de atirá-las fora. Dizer-lhes adeus. Bye-bye. Até nunca mais. Portem-se bem. Agora vão ficar com este senhor. ele vai tratar bem de vocês. Um beijo. Ciao. Livre...
Meto-me na cama. Está escuro. São nove da manhã. O céu está fechado como a vagina de uma virgem. Nem preciso baixar mais a persiana. Enterro-me dentro dos lençóis depois de escrever isto. Só poucos sabem o que custa...

quinta-feira, outubro 07, 2004

mito sobre a profissão #5

-conduzimos todos um Mercedes.


(o meu é um Renault)

sobre conversas

Já me aconteceu perguntarem-me "se não me canso de estar o dia todo a falar". Não percebo por que as pessoas acham que eu passo o dia todo a falar. Na verdade, eu e muitos dos meus colegas falamos pouco. O nosso negócio nem é tanto guiar o táxi. É guiar, estar calado e ouvir. Para o taxista que estiver interessado em ganhar umas grojas, a lei passa a ser: guiar, estar calado, ouvir e concordar.

Claro que isto nem sempre é fácil. Sobretudo quando temos um gerente qualquer a falar-nos de taxas, de enfermeiros a recitar nomes de doenças que só pela conversa nos dão dores de cabeça... enfim. Há de tudo.

Mas então, como conseguir manter uma conversa com o mínimo de recursos possível?, até sem perceber nada sobre o tema?

Por mínimo de recursos entendamos expressões como "pois", "é mesmo", "é", "isto realmente", "claro", "é verdade", "é incrível" e os incontornáveis "sim", "não" e "mais ou menos". Para mim, que sou mulher, é frequente aplicar isto todos os dias, ou não fosse grande parte dos clientes que levo atrás homens, e não fosse o tema, metade das vezes, futebol.

Ele - Aquele Peseiro... olhe que ele até pode ser muito bom de táctica, mas aquilo no balneário ele deve passar mais tempo é com ele próprio que com os jogadores! Isto de teóricos...
Eu - É mesmo...
Ele - O Mourinho é que lá se vai safando!
Eu - E bem...
Ele - Também, com uma equipa daquelas!
Eu - É...
Ele - Mas voltando ao Sporting, e não estou aqui a defender o clube, que eu quando é nestas coisas gosto de ser isento... mas já viu o que é que eles fizeram ao Rui Jorge!? Obrigarem-no a pagar 650 euros!?
Eu - É mesmo...
Ele - Isto neste país!... Só à gatunagem!
Eu - É... isto está mau...
Ele - Mau!? Mau?!... Isto está péssimo! Péssimo!
Eu - Péssimo...
Ele - Só para que veja: há quantos anos anda o Pinto da Costa à frente do Porto!? E já alguém o apanhou!?
Eu - É... isto realmente...
Ele - Não pode ser, menina! Isto assim neste país não pode ser!
Eu - É incrível, é...
Ele - E ainda me vêm dizer que o Jorge Costa é bom jogador!... Andam a brincar com a gente! O homem já nem corre! Só se arrasta! É mais velho que eu!
Eu - É verdade...
Ele - Enfim... Sabe o que lhe digo: isto quem é burro, que não seja. Este mundo é para os espertos.
Eu - (sorrio)
Ele - Sabe que mais, eles é que o levam todo ao fim do mês. A menina não leve a mal, mas você e eu é que somos parvos.
Eu - Pois...
Ele - 20 mil contos por mês! E o Simão Sabrosa o dobro! A comprar carros de 40 mil contos! Onde é que já se viu!? E o Benfica a fugir às dívidas!
Eu - É verdade...
Ele - Eu para pagar a minha casa, que é metade disso, vou andar 30 anos! Não pode ser! Isto assim mais valia o tempo da PIDE e do Salazar.
Eu - É... isto assim...
(...)

Claro que convém saber que nem todas as teorias batem certo. Pelo menos saber que não batem sempre certo. Esta foi uma daquelas vezes em que não só fiquei sem gorjeta, como o troco era tão incerto que o homem me ficou a dever 5 cêntimos... Mas enfim. Umas vezes dão para as outras.

quarta-feira, outubro 06, 2004

mito sobre a profissão #4

- os taxistas falam muito.

(ouvimos mais)

sexta-feira, outubro 01, 2004

sobre a vida

Chateiam-me as notícias da manhã. Odeio ver os primeiros boletins de informação. Odeio. Mas dá jeito. Vê-se o trânsito. Vê-se o tempo. Tiram-se umas ideias para saber o que levar vestido. Mas não percebo. Ou melhor, até percebo; Mas não sei como fazem aquelas pessoas que escolhem a roupa de véspera? Como conseguem!? Será alguma parte do cérebro mais desenvolvida que a minha? Como adequam, antevêem, prevêem a sua disposição, o clima? Os mistérios nisto deixam-me mais abismada que ver um tipo acorrentar-se e enfiar-se em cimento para depois sair dali em 12 minutos...

Ainda assim, odiando os noticiários matutinos, vejo-os, vejo as notícias de gente a morrer à fome, de mais um atentado em Bagdade, de mais umas crianças mortas em Israel ou na Palestina, da América a mandar-nos em todos, e claro, da manchete nacional do dia; seja ela um novo imposto, uma nova fraude, um boato, uma treta qualquer que nos vai encharcar as orelhas nos seguintes dias, até à exaustão.
Vejo.
E depois?
Sou culpada. Não devia. Mas é automático. E não sei porquê, talvez aconteça com mais pessoas, mas parece sempre que de manhã todas as notícias soam mais duras, rudes, amargas, brutais. À noite talvez estejamos demasiado exaustos para notá-lo, ou absortos, ou simplesmente anestesiados pela repetição das mesmas tragédias. Ou talvez estejamos tão fartos do mundo que o nosso cérebro ao escutar as desgraças nos faça pensar: estou-me a cagar para essa bomba, estou-me nas tintas para essa nova doença, quero lá saber desse escândalo... deixem-me ver o desfile de moda em Milão ou as imagens da princesa do Mónaco com o novo namorado!

Aparte isto, há pessoas. Pessoas que trazem nos lábios um sorriso meigo. Aquele homem que nos entra pelo táxi dentro, que nos estreia a bandeirada e nos faz pensar que não é deste mundo, que deve ser da Terrugem, deve ter 90 anos e tanta saúde que por isso vive numa completa ebriedade. É mais uma daquelas coisas que não entendo...

Às vezes fico a olhar essas pessoas pelo espelho. Faço que vejo o trânsito, mas vejo-os a eles. Na realidade, é neles que afunilo o meu pensamento. Aqui e ali arrisco uma pergunta, uma sondagem, ao de leve. A última vez foi ontem. Entrou com mil cuidados e uma elegância educada. Cabelos, poucos, e brancos. Sentou-se e pediu-me para o levar às camionetas. Perguntei-lhe para onde ia, de lá, o que fazia, como lhe corria a vida... Ele limitou-se a aconchegar aquele sorriso paternal e a deixar no táxi uma única frase para além do bom-dia e até à próxima:


-vai indo... sabe, tenho uma reforma que me dá para pagar o lar e ainda sobra um poucochinho para as minhas coisas. sou um homem rico.