segunda-feira, dezembro 06, 2004

sobre o insólito

O insólito vivi-o há poucos dias. Noite cerrada (o que agora não é difícil acontecer logo às 7) e um homem de barba por fazer entra no táxi.
-Leve-me até à estação de comboios da Amadora, p.f.

Arrancamos. É imediato, ao fim de segundos, que aquele sorriso de criança não é sinal de um utilizador comum de táxis. Remexeu nos tecidos, olhou muito em volta, explorou-me o táxi minuciosamente como um cowboy inspecciona o crivo à procura de uma pepita de ouro. Meti-me com ele:
- Não me diga que é a primeira vez que anda de táxi?
- Não!
– responde-me a sorrir muito.

Ajeita o grande saco plástico. Recosta-se no banco. Vai olhando lá por fora sem vestir os dentes à mostra.
-Sabe… às vezes tenho umas ideias assim; meio malucas!
-Assim como?
-Estou a fazer este passeio com o dinheiro de um biscate. Queria ver como era regressar a casa de táxi, sem estar a passar pelas esperas nos transportes públicos. Queria assim, com ‘choffeur’ e tudo.
(pausa) Não me leve a mal.
-Não, claro que não. (pausa minha) E está a gostar?
-Achava que ia gostar mais…
-Porquê?
-Porque eu não sou um homem de negócios.
-É por isso!?
-Mais ou menos…
-Como assim? Porque eles têm mais dinheiro?
-Não propriamente... A diferença nem é que eles têm mais dinheiro. A diferença é que eles vão e vêm de táxi porque o táxi não é pago com o dinheiro deles.
-...


Ainda assim manteve-se de sorriso perene até à Amadora. Deixei-o. Deu-me uma gorjeta simpática e tudo. Ali ia ele, de saco de supermercado na mão, com ferramenta a chocalhar lá dentro. Tenho 99% de certeza que não o voltarei a ver. Gostava de poder acreditar que um dia se tornaria um importantíssimo homem de negócios, que o voltaria a ter no táxi; mas sei que não vai ser assim.

Esta profissão ensina-nos alguma coisa. Uma delas, uma das mais importantes, é que a natureza humana, a natureza de alguns homens, não se transforma, mas antes os acompanha inteiramente igual até ao fim. É um olhar estranho, que se aprende enquanto se conduz tanta gente...

Fico pensativa.
Divago a ponderar o que será que, de entre nós, taxistas, alguns pensarão de mim a este respeito...

1 comentário:

jarmando disse...

Tenho de confessar que gosto de ler o que escreve. Bem haja por existir.