terça-feira, janeiro 25, 2005

sobre uma lenda transformada em artigo de feira


Sabemos que o mundo se tornou um lugar estranho quando vemos um comerciante usar um gorro tamanho XL, preto, de feira, e a descambar da cabeça, com as palavras escritas na frente e a dourado “The Doors”.
Não se faz.
Simplesmente não se faz...


sexta-feira, janeiro 21, 2005

sobre a sinceridade

Ela esguia, algo feiíta, cabelo muito liso e fino, olhos grandes, azuis cinza, lindos, tristes contudo.

-Desculpe... não quero que me leve a mal...
-Diga.
-Às vezes, aqui assim no táxi, não se sente sozinha?
-Às vezes... como toda a gente. Porque é que pergunta?
-Porque acho que as pessoas que mais vivem rodeadas de muita gente são quase sempre as que se sentem mais sozinhas.
-Às vezes, sim... (pausa) A senhora também?
-Também...
-Sem me querer intrometer demasiado; o que é que a senhora faz?
-Sou caixa.
-Num supermercado?
-Não, num Banco.
-Ah... Talvez por isso...
-Por quê?
-Porque é assim mesmo. Connosco as pessoas chegam e logo vão. E não se pode dizer que estejamos rodeadas de pessoas; estamos todo o dia sozinhas. Temos é imensas visitas, se é que me percebe...
-Sim, mas acho que também percebeu o que eu quis dizer.
-Claro que sim.
Pauso.
Percebo que há ali alguém que não teve um dia muito feliz.
Reponho a conversa:
-Às vezes não deseja ardentemente que alguém, nem que seja apenas uma pessoa, lhe pergunte com sinceridade "Como está?", em vez de ser apenas uma muleta para iniciar conversa?
-Quer que eu lhe diga uma coisa com toda a sinceridade?
-...
-Não. Já tive esse desejo. Mas hoje não acho que seja realmente tão importante assim. Sempre aparece uma ou outra pessoa que nos conhece já de há algum tempo e nos pergunta, de facto, com autenticidade, como estamos. Mas o que eu queria dizer realmente no início, quando lhe perguntei aquilo, é se não sente falta de um homem com quem ir para a cama.


terça-feira, janeiro 18, 2005

sobre as armas

por vezes gostava de cessar toda esta farsa, limpar esta nublina, puxar o véu para o lado. Pensarão talvez que falo do anonimato, mas não. Falo de nós. Sobre nós. Sobre como tantos de nós é assim mesmo. Ausente. Distante. Só. Mas cheia de amigos. Cheia de gente. Cheia. Acompanhada. Junto. Tal como tantos que passam pelo meu táxi. Ali estamos nós. Dois seres do mesmo mundo. E contudo nunca estivémos tão distantes. Somos rostos falsos. Porque falamos e não vemos, de facto, que rugas e que lágrimas e que risadas há em cada um.

sobre isto, por vezes, gosto de dizer que é assim, e é assim mesmo.

irei eu, alguma vez, conhecer mais de alguém pelo que lhe leio, mais do que poderia se me dessem três instantes do rosto de cada um, a dormir, na cama, isento de armas de defesa!?

não creio.

sobre as palavras

Quantas palavras temos nós de ler por cada uma que escrevemos?
E quantas palavras temos nós de ler por cada uma boa palavra que escrevemos?

sexta-feira, janeiro 14, 2005

sobre a poesia da fotografia

Em casa de uma amiga minha desfolho um livro com uma série de fotografias que já andaram em exposição itinerante pelo mundo fora. A dada altura, detida e entretida a ver uma delas, viro uma página, observo uma foto e partilho-a, mostrando-a:
-Já viste este auto-retrato?
Ela olha a foto e depois olha para mim. Olha de novo a foto e depois olha de novo para mim. Quase a sorrir, pergunta-me:
-Já leste o título da foto?

Intrigada, baixo o rosto e reparo nas letrinhas pequeninas, onde leio:
"Fotografia de um espelho"

quarta-feira, janeiro 12, 2005

sobre o silêncio

Talvez se esta cidade se apinhasse de silêncio, talvez se uma entidade superior me desse um telecomando mágico e eu carregasse na tecla de 'mute', talvez se eu fosse Deus e pusesse o indicador erguido à frente dos lábios fechados e apertados e assim toda a gente me obedecesse (ou pelo menos os cristãos, que já não era pouco), talvez se alguém tirasse o cabo que liga esta barulheira toda às colunas que ainda amplificam tudo mais e mais... talvez assim, quem sabe, o raio desta dor de cabeça se pusesse a andar daqui para fora e eu pudesse aturar melhor as filas de trânsito e as buzinadelas parvas, já para não falar nas bocas parolas de quem parece que nunca viu uma mulher ao volante.

sexta-feira, janeiro 07, 2005

sobre o frio

Já criaram o aquecimento geral, os desembaciadores para os vidros e até aquecimento nos bancos... Mas quando é que se lembram de criar um aquecimento interno nos volantes? Uma pessoa fica com as mãos geladas! Não há cremes que nos salvem!

quinta-feira, janeiro 06, 2005

sobre peep-shows e casas de meninas

Noite. Ainda é cedo. Braço levantado. Páro. Ele, um tipo comum, nada de mais, até bem arranjado, cinquentão, entra e senta-se com toda a calma.

-Leve-me ao passerelle, por favor...

Uns vinte ou trinta segundos a olhar lá para fora.

-Já sei o que deve estar a pensar: "Olha-me mais um tarado!". Mas se lhe disser porque é que vou a alguns destes sítios, se calhar não acredita. O propósito é puramente cómico! Como é mulher, acredito que não saiba destas coisas... quer dizer... não estou a dizer que não sabe o que lá se passa, só estou a dizer é que provavelmente não sabe destas graças que lhe ia contar. (ri-se) Sabe, é que eu vou lá porque às vezes o desleixe nos dá vontade de rir. É claro que é tudo sobre mulheres. Mas se às vezes visse!... (ri-se de novo) Eu vou lá porque é engraçadíssimo! Às vezes há umas que andaram a rapar-se há minutos atrás e ainda estão com a pele toda irritada, uma ou outra esqueceu-se de tirar um penso rápido, outra tem o azar de naquele dia ter uma borbulha enorme num sítio prioibitivo... (ri-se a bandeiras despregadas, como se estivesse a falar do Buster Keaton) Enfim, às vezes só me dá mesmo vontade de rir! Ai, ai...

O mais curioso nisto é que, acreditem, eu nem lhe perguntei coisa nenhuma...